Realidade virtual na medicina: novas possibilidades de tratamento

A realidade virtual está moldando o futuro da medicina com novos métodos de diagnóstico e tratamentos personalizados

Guilherme de Abreu* Publicado em 22/02/2025, às 06h00

Também existem desafios éticos e sociais em usar a realidade virtual na medicina, por exemplo a privacidade dos dados dos pacientes -

No cenário dinâmico e em constante evolução da medicina moderna, a incorporação de tecnologias emergentes está revolucionando a forma como entendemos e abordamos o cuidado com a saúde. Este artigo explora como essas tecnologias estão moldando o futuro da medicina, com um foco especial em seus impactos no desenvolvimento cerebral, além das implicações sociais, éticas e econômicas que acompanham essa transformação digital.

A realidade virtual não é uma inovação recente, já que foi criada há mais de meio século. Desde então, tem sido gradualmente desenvolvida, ampliando suas áreas de aplicação. Em essência, a realidade virtual refere-se a tecnologias que utilizam ambientes virtuais gerados por computador para criar experiências imersivas, simulando a presença física em mundos imaginários. Por outro lado, a realidade aumentada destaca-se por mesclar o mundo real com o digital, criando um ambiente onde dois universos coexistem — um deles, irreal.

Para os propósitos deste artigo, ampliaremos essa definição. Nosso cérebro é constantemente bombardeado por diversos estímulos, e, às vezes, alguns podem enganá-lo. O funcionamento cerebral envolve um equilíbrio dinâmico entre a ativação de certos circuitos e a desativação de outros. Naturalmente, enquanto focamos nossa atenção em um ponto, outros aspectos são desligados e, pelo menos para o cérebro naquele momento, deixam de existir. Não é que o cérebro nos engane propriamente, mas jogamos um jogo em que ele dita as regras, já que todas as informações passam por suas conexões. Ele nos fornece o significado das coisas através de uma leitura dinâmica e, até certo ponto, imprecisa da realidade. Assim, consideraremos a ideia de que a realidade virtual é qualquer realidade que, para o nosso cérebro, não existe de fato, mesmo que apenas por um período de tempo.

Diversos experimentos têm sido realizados para simular como o cérebro percebe a realidade. Em um desses estudos, cientistas cobrem a mão verdadeira de um voluntário e apresentam uma mão artificial. O experimento consiste em fornecer estímulos táteis à mão verdadeira, escondida, enquanto um estímulo semelhante é aplicado na mão visível, falsa. Em determinado momento da simulação, o participante pode não conseguir distinguir qual é sua mão real e pode até ter sensações que, para o cérebro, parecem reais, mas que não ocorreram verdadeiramente. Estratégias como essa podem ser utilizadas no futuro para controle da dor ou para realizar procedimentos com menor uso de anestésicos, por exemplo.

A partir de modelos mais simples, podemos avançar para o uso de tecnologias que modificam ambientes. Ferramentas como óculos de realidade virtual já são utilizadas para acalmar pacientes em áreas hospitalares mais hostis, como durante exames de ressonância magnética. Esse tipo de terapia é especialmente valioso no contexto pediátrico, transformando procedimentos invasivos em experiências menos traumáticas e permitindo o uso reduzido de sedativos e analgésicos. Além disso, podem ser aplicadas terapeuticamente, auxiliando no tratamento de fobias e outros transtornos psicológicos.

Em um mundo onde a ansiedade e o estresse são cada vez mais prevalentes, a RV oferece um refúgio inovador, permitindo que pacientes experimentem ambientes seguros e controlados que promovem o bem-estar emocional. Em terapias de exposição, por exemplo, a realidade virtual pode recriar cenários que permitem aos pacientes enfrentar gradualmente suas fobias em um ambiente monitorado, facilitando o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento eficazes. Para crianças com transtornos de desenvolvimento, como autismo e TDAH, a RV se mostra uma ferramenta poderosa para melhorar habilidades sociais e de comunicação, oferecendo simulações interativas que estimulam a interação e o aprendizado de forma lúdica e envolvente. O uso de realidade virtual em contextos terapêuticos não só expande o alcance das intervenções tradicionais, mas também abre novas possibilidades para tratamentos personalizados e centrados no paciente, promovendo um desenvolvimento cerebral mais harmônico e equilibrado.

Mas, talvez a última fronteira da realidade virtual, em sua definição mais abrangente, seja a criação do "gêmeo digital". Trata-se de uma versão digital completa de um ser humano, gerada por inteligência artificial a partir de uma constelação de dados, que pode servir a diversos propósitos, como simular a eficácia de tratamentos, prever doenças ou calcular riscos de certas exposições. Os dados seriam provenientes de três esferas principais:

1. Material genético: Utilizar o DNA como base, permite que todas as informações genéticas sejam mapeadas e lidas tecnologicamente para compor uma versão digital idêntica a cada indivíduo.

2. Informações de registros de saúde: Tudo o que de fato ocorre na vida da pessoa, registrado em prontuários médicos — incluindo exames de sangue e laudos de imagem — seria adicionado ao gêmeo digital, incorporando as mesmas vivências ao seu histórico de saúde.

3. Dados em tempo real: Os diversos sensores que monitoram informações de saúde, como frequência cardíaca, contagem de passos, respiração, glicemia, entre muitas outras.    

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A incorporação da realidade virtual na medicina levanta importantes considerações sociais, éticas e econômicas, que não podem ser ignoradas em meio ao entusiasmo pelas novas tecnologias. Um dos principais desafios é garantir que essas ferramentas inovadoras sejam acessíveis a todos os cidadãos, independentemente de sua condição socioeconômica. Economicamente, enquanto a implementação de tecnologias de RV pode representar um investimento inicial significativo, as vantagens a longo prazo são promissoras, incluindo a redução dos custos associados a tratamentos tradicionais e a melhoria dos resultados clínicos. A democratização do acesso à realidade virtual na saúde requer políticas públicas eficazes e investimento em infraestrutura, para que não se crie um fosso ainda maior entre aqueles que têm acesso a cuidados de saúde de ponta e aqueles que não têm.

De uma perspectiva ética, a privacidade dos dados dos pacientes é uma preocupação crescente, pois o uso de gêmeos digitais e outros sistemas baseados em RV envolve a coleta e o processamento de grandes volumes de informações pessoais. É crucial estabelecer diretrizes claras para a proteção desses dados, assegurando que a inovação não comprometa a confidencialidade dos pacientes. Entretanto, talvez apresente um futuro promissor para imitar o comportamento de novas substâncias sem depender da utilização de animais em larga escala.

A realidade virtual e suas tecnologias emergentes, como o fascinante conceito do gêmeo digital, estão não apenas redefinindo as possibilidades dentro da medicina, mas também expandindo os horizontes do que consideramos possível em termos de cuidado e tratamento de saúde. À medida que avançamos nesta nova fronteira, somos chamados a não apenas abraçar essas inovações com entusiasmo, mas também a fazê-lo com um senso de responsabilidade. A verdadeira transformação que a realidade virtual promete está em seu potencial de tornar os cuidados de saúde mais personalizados, inclusivos e eficazes, enquanto enfrentamos os desafios éticos e sociais com políticas robustas e práticas sustentáveis. Apenas assim haverá a integração harmoniosa dessas tecnologias na história da medicina moderna.

 

Dr. Guilherme de Abreu é Pediatra, graduado pela Universidade de São Paulo. Estudou em Harvard Medical School , em um curso de pós-graduação em pesquisa clínica, com tese em Neonatologia e Desenvolvimento neonatal. Fez estágio clínico na Case Western Reserve University – Cleveland – EUA, no ambulatório de Developmental and Behavioral Pediatrics e na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN).
Trabalha desde 2019 no Hospital Israelita Albert Einstein como neonatologista responsável pelo Ambulatório de Prematuridade no Centro de Especialidades Pediátricas. Presta atendimento a crianças com transtornos do desenvolvimento e doenças raras.

*com edição de Marina Yazbek Dias Peres

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