É urgente afastar as crianças das telas e incentivar o brincar, a diversão ao ar livre, para garantir um bom desenvolvimento infantil
Guilherme de Abreu* Publicado em 13/12/2024, às 06h00
Brincar é assunto sério. A brincadeira é um elemento fundamental na trajetória do desenvolvimento infantil, um conceito que pedagogos e psicólogos de destaque histórico têm defendido em suas teses. Estudiosos como Friedrich Froebel, Maria Montessori e Jean Piaget reconheceram a profunda influência que as atividades lúdicas exercem sobre o crescimento humano, moldando práticas educativas que permanecem relevantes até hoje.
Friedrich Froebel, criador do conceito de Jardim de Infância, viu na brincadeira a expressão mais pura das emoções e pensamentos infantis. Ele desenvolveu métodos pedagógicos que priorizam o aprendizado por meio do brincar, estabelecendo a base que ainda estrutura a educação pré-escolar moderna.
Maria Montessori, por sua vez, destacou a brincadeira como um catalisador para o desenvolvimento da autonomia e da criatividade. Em seu método, pautado pela auto-descoberta, a criança é a protagonista, imersa em um mundo onde a liberdade para criar é ilimitada. Esse ambiente lúdico e livre torna-se um campo fértil para a experimentação, onde a criança pode explorar e testar conceitos sem as restrições que muitas vezes limitam os adultos. A criança tem o seu próprio mundo durante a brincadeira. Tudo acontece ou deixa de existir pela simples intenção da criatividade e a liberdade de criar infinitas possibilidades torna a brincadeira o cenário perfeito para testar modelos.
Jean Piaget também contribuiu significativamente ao tratar do brincar como um mecanismo essencial para o desenvolvimento cognitivo, onde as crianças internalizam e experimentam diferentes aspectos da realidade. Ao brincar, a criança não apenas exercita sua criatividade, mas também desenvolve habilidades fundamentais de resolução de problemas, simulação de conflitos e compreensão do mundo ao seu redor.
A importância da brincadeira, portanto, não está apenas em seu caráter recreativo, mas em sua capacidade de ser um veículo de aprendizado profundo e intuitivo. Ela permite às crianças experimentar a complexidade do mundo de forma segura, preparando-as para os inúmeros desafios que encontrarão ao longo da vida. A brincadeira, tão natural e instintiva para as crianças, está profundamente entrelaçada com o desenvolvimento cerebral e tem um papel crucial na neuroplasticidade — a capacidade do cérebro de se reorganizar formando novas conexões neuronais em resposta a experiências e aprendizado. Este fenômeno revela como o brincar é essencial para moldar a arquitetura cerebral durante a infância.
No centro deste processo biológico estão os neurotransmissores, mensageiros que estabelecem a comunicação entre os neurônios. Entre eles, a dopamina se destaca como uma substância relacionada à motivação e à sensação de recompensa. Quando as crianças se envolvem em atividades prazerosas e desafiadoras, a liberação de dopamina não só intensifica a experiência lúdica, mas também reforça o aprendizado, estimulando a repetição e o aprofundamento das habilidades adquiridas.
Entretanto, no contexto moderno, os jogos eletrônicos são projetados para maximizar a liberação constante de dopamina, criando um ciclo de recompensa quase imediato e intenso que pode, muitas vezes, ofuscar outras formas mais tradicionais de brincadeiras. Essa intensidade pode fazer com que atividades lúdicas menos estimulantes sejam vistas como menos atraentes, ou até entediantes, especialmente por cérebros em desenvolvimento que ainda estão aprendendo a modular emoções e expectativas. Além disso, a interrupção abrupta dessas atividades — como quando os pais determinam o fim do tempo de tela — pode resultar em uma queda brusca demais para um cérebro ainda imaturo, podendo desencadear respostas emocionais intensas, como frustração ou irritação.
Ao entendermos essa complexidade neurológica, podemos apreciar ainda mais o valor das brincadeiras diversificadas, que não só proporcionam alegria e engajamento, mas também cultivam um desenvolvimento cerebral robusto e harmônico. Assim, a brincadeira continua a ser um terreno fértil para o crescimento e a descoberta, alinhando-se perfeitamente com as teorias pedagógicas sobre o papel fundamental do brincar no desenvolvimento humano.
Cognição: planejar e entender as regras, criar personagens e histórias são fortes estímulos ao desenvolvimento cognitivo.
Emocional: aprender a perder, esperar sua vez de jogar e saber vencer corretamente.
Linguagem: a comunicação estabelecida durante as atividades em grupo reforçam a linguagem receptiva e expressa.
Motor: toda atividade lúdica envolve algum movimento, dos mais finos, pelas pontas dos dedos, até os mais intensos como pular, correr ou se equilibrar.
Em última análise, as funções aprendidas no contexto de simples brincadeiras instigam valores como generosidade, justiça e muitas outras habilidades, essenciais ao convívio em sociedade. Aliás, esse universo livre e imaginativo é um espaço pleno de verdadeira inclusão e respeito à diversidade, especialmente para crianças com necessidades especiais.
A brincadeira desenvolve ainda o autocontrole e é, sabidamente, um recurso natural e efetivo de lidar com desafios emocionais como grandes e difíceis mudanças na rotina, estrutura familiar ou outros obstáculos da vida, tendo, por assim dizer, uma função terapêutica. A maioria das crianças se utiliza da imaginação para processar conflitos emocionais, que auxiliam no processo de amadurecimento. Nesse sentido, dar tempo suficiente para a brincadeira torna-se uma ferramenta fundamental na educação e criação de crianças. A própria adequação da criança a diferentes brincadeiras é uma ferramenta importante, comumente utilizada em consultas pediátricas para averiguar as etapas do crescimento e da evolução comportamental.
Assim, sabendo que a brincadeira é muito mais que simples recreação, precisamos aprender a estimulá-la ao máximo, potencializando sua influência na vida das crianças. É fundamental, por exemplo, criar ambientes seguros e estimulantes para brincadeiras, não apenas com brinquedos, mas com materiais apropriados a diferentes idades e interesses, que auxiliem no processo de criação. Objetos simples como tecidos para fantasias e materiais reciclados ou outros objetivos impensados podem se transformar nas mãos certas. Também é importante ter um equilíbrio entre atividades estruturas, como jogos de tabuleiro, e não estruturadas, já que estimulam diferentes áreas do desenvolvimento. Limitar o tempo de tela, com regras claras de utilização e, preferencialmente, não muito próximo do horário de dormir, também auxilia na composição de um dia ativo e pleno. Outra dica é estimular brincadeiras ao ar livre, em especial no início do dia e ao final da tarde. É sabido que o cérebro responde de modo muito mais intenso, cerca de 50 vezes maior, à luminosidade característica desses períodos, mantendo um ritmo de ativação e foco ao longo do dia e promovendo a desaceleração ao final do dia, ajudando inclusive a preservar um sono de qualidade a despeito de outros estímulos luminosos durante a noite.
Por fim, um incentivo à participação dos adultos nas brincadeiras das crianças, reforçando importantes laços afetivos e de confiança. Nesse momento é possível modular aspectos de comportamento e ensinar valores, mas procurando sempre não direcionar demais as ideias e não limitar a criatividade. Com essa visão mais detalhada e ampla, entendemos a importância do brincar na vida das crianças e seu papel vital na educação e no desenvolvimento infantil.
*Guilherme de Abreu é médico, pediatra e neonatologista, graduado pela Universidade de São Paulo. Trago comigo mais de quinze anos de experiência clínica e em pesquisa, tendo sido treinado em instituições renomadas no Brasil e no exterior. Atua principalmente no cuidado pediátrico e de crianças com transtornos do desenvolvimento, com especialização na área de Desenvolvimento & Comportanneto Infantil em Cleveland - EUA.
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