Negra Trama

O colunista Plínio Camillo nos traz neste espaços sugestões de leitura de autoras pretas. O texto de hoje é de Zainne Lima da Silva, Negra Trama

Zainne Lima da Silva* Publicado em 17/05/2024, às 06h00

Negra Trama -

Hoje vou contar a história de Elisângela. Teve o pai assassinado na rua, a família nem sabe a razão. O que sabem é o bairro onde o pai de Elisângela levou os tiros, Capão Redondo, a data, treze de abril de 94, e que ele foi encaminhado ao hospital pela polícia militar. Que ele estava sob suspeita de algo sério, o suficiente para levar tiro na testa, rasgando seu maior perigo – o pensamento. Que ele parecia bandido, que a fala desconexa e a atitude agressiva mostravam que era bandido. Quem diria que não?

O pai de Elisângela era esquizofrênico, como os pais dele e seus irmãos, todos mortos antes dos 40 anos. A família de Elisângela não soube da doença até despontar o surto, quando ele completou 31. O surto foi violento e o pai de Elisângela passou vários dias sumidos, sem dar notícia, com a mesma roupa no corpo. Quando apareceu, foi morrendo. Era verão.

O hospital não quis retirar as quatro balas da testa do pai de Elisângela porque todos, mas todos mesmo: hospital, polícia, até os anônimos que olhavam o homem ensanguentado no asfalto, criam que ele era um marginal, que os tiros eram legítimos. Os pobres só faziam trazer problemas e ninguém aguentava mais aquilo. Deixaram o homem morrer de sepse. dizem que de sepse. Sepse racial. Higienização. Bem na época em que matavam tantos para a contribuição do genocídio naquela região. Coisa que Mano Brown e Edi Rock viviam cantando.

A família de Elisângela superou muito bem a morte do pai. Mas ela não. Elisângela era negra, militante e a morte de seu pai a intrigava demais. Ela queria saber pormenores, entender o que havia acontecido, qual o motivo por trás de tanto ódio. Não obtinha respostas. Não havia justiça. Não havia história para ser compreendida.

O pai de Elisângela, o Toninho, morador da COHAB Adventista, havia sido militante também. Participava de movimentos pela conservação do maracatu pernambucano, pelo orgulho afro-brasileiro da manifestação musical. Retirante, viera da cidade de Arcoverde com as trouxas nas costas à procura de melhores oportunidades de emprego. Não vivia apenas de tocar tambor – a batida das mãos não fazia dinheiro. Múltiplas diásporas. Trabalhava numa fábrica de sabão. Com máquina. Elisângela diz que, para não sofrer tanto, o pai tentava achar no trabalho um ritmo. Que tudo, para ele, era cadência e dança. Uma ferida, uma chega à procura da cura.

A morte do pai de Elisângela quase a matava, tamanha era a inquietação em seu peito. Toda vez que Elisângela, a ativista, sabia de casos de morte parecidos, entrava em crise. Chorava até sangrar pedaços grandes entre as pernas. Vomitava, passava mal. revivia o trauma. Elisângela não entendia, não aceitava. A militância era sua principal causa de sofrimento. Paradoxalmente, era o que a mantinha viva. Sentia que suas entranhas clamavam por reparação. 

Quando Elisângela se casou com um homem branco, ninguém entendeu. Ela falava muito sobre amar pessoas negras, valorizar pessoas negras e suas qualidades. Mas, na verdade, o casamento expunha a ferida ainda aberta. Elisângela me segredou que, uma vez que ela, negra de pele clara, concebesse uma criança com seu marido branco, a criança, muito provavelmente, nasceria clarinha. Clarinha o suficiente para deixar de ser alvo da violência sistêmica. Ela poderia ser mãe em paz.

A criança, um menino, chamado Toni, Toninho como seu pai, nasceu branco. Elisângela deu de toda possível educação para o menino, porque, apesar de tudo, ela continuava negra. Ativista. Ferida aberta. O amava sem reservas, consciente da manobra que havia feito para não ter a maternidade interrompida.

Foi então que, num dia desses, mataram um menino negro chamado Pedro Gonzaga. Elisângela perdeu o controle da dor. Chorou até desfalecer. Caiu no meio da Avenida São João, em dia de chuva. No pronto socorro, botou espuma pela boca. Falava coisa com coisa, chorava muito alto, assustando todo mundo. Elisângela era alta e gorda, linguaruda. Mantiveram-na sob efeito de sossega leão.

Veio parar neste manicômio, onde estou há tantos anos, por motivos perversamente semelhantes. Eu sou negra como Elisângela. Compreendo-a muito bem, como se tivesse na pele a marca de suas dores particulares. Dormimos todas as noites de mãos dadas. Elisângela é a filha que eu nunca me permiti ter. E eu tenho tempo de dar a ela a atenção que a mãe, viúva, não conseguira. Enquanto dorme, Elisângela repete Toni, Toni; não sei se chama pelo pai ou pelo filho. Acordo seus pesadelos, ela dá um grito agudíssimo e chora até voltar a dormir.

Diferentemente de Elisângela, eu não tive homem que quisesse fazer um filho comigo. Talvez fosse a tal da minha pele mais escura. A professora Lélia costumava dizer que mulheres como eu, de pele mais escura, eram mães de muitas crianças que não pariram e nem escolheram para si. Penso nisso, aqui, na cama, sob a luz de uma vela roubada, encolhida no espaço que sobra entre Elisângela e a parede. Sinto-me com alguma inclinação implícita de cuidar dela. Mas dessa vez é diferente, porque ninguém me obriga.

Fui ensinada a zelar pelos outros, independente de quem fossem. A ser boa e terna. Eu fui a responsável por criar os filhos de meus patrões, a Vá a quem as crianças corriam quando algo não ia bem. Ao mesmo tempo, cuidava de sua comida, roupa, limpeza, organização. Eu fui mais que mãe, fui também escrava moderna. A empregada multitarefa que os senhores gostavam de exibir às vizinhas. vejam como minha casa é limpa, como os vidros brilham e a comida cheira, vejam como meus filhos são bem cuidados, não apresentam cárie nem afasia, os meus lindos meninos brancos e gordos de tanto comer dinheiro. até de alfabetizar eu tratei de. Escondida. Porque os patrões não achavam que a bá seria capaz de ter algum tipo de inteligência.

Não só sou inteligente, como escrevo. Tenho cadernos e cadernos aqui dentro desta prisão. Agora, me encarrego de contar as histórias de meus colegas de internação. Porque não sabemos se os remédios que nos dão estão a roer nossa capacidade de refletir. De questionar. De reagir. Foi por isso que me trouxeram. Eu mijei toda a cama de Márcia, minha patroa, quando me xingou no dia de meu aniversário. Aguentava desaforo o ano todo, merecia um dia de paz.

Olho para meus seios murchos e lembro bem cada boca rosa de criança desdentada que passou por eles. Amei cada um dos filhotes de patrões. Amei sem nada em troca; nem respeito, nem saudade. Márcia não tardou me internar com desculpa de que sou louca. Pois fiquei quando soube que, após tanto serviço, queriam me internar. Gritei, caguei o hospital. Taquei bosta na cara do doutor. Minha mãe, tão velha, cansada e sozinha, fez foi concordar. Que eu não era mesmo tão certa da cabeça, que era muito revoltada, vivia com caderno e lápis na mão, falando de racismo.

Vai ver que esta pocilga foi a melhor coisa que me aconteceu. Pelo menos não tenho que lavar latrina. Visto branco todos os dias da semana e faço valer meu orixá. O sono da medicação vem me pesando os olhos. Saúdo seu Toninho, agradeço a oportunidade de ser mãe de uma pretinha inteligente. Inteligente e sã. 

Eu me chamo Stela, tenho 62 anos e não sou louca. Repito sempre para não esquecer.

 

Sobre a autora

Zainne Lima da Silva

 

*Zainne Lima da Silva (1994) nasceu e vive em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, filha de mãe baiana e pai pernambucano. Em seu perfil publicado na antologia Jovem afro (2017), declara ter sido alfabetizada em casa aos cinco anos e que, desde então, “nunca parou de escrever.” A autora conclui Letras na USP e “pretende seguir carreira acadêmica estudando a literatura negra e periférica de seu povo.” Além de poeta e prosadora, atua como professora do Ensino Básico, arte-educadora, pesquisadora, revisora e roteirista. Zainne Lima é uma promissora poeta do século XXI. Sua arte merece leituras e releituras. Com sutileza e consciência ela reverbera em seus poemas parte da sua alma de escritora, um trabalho de extrema relevância na sociedade, principalmente na exaltação do povo negro, por ter uma linguagem forte, viva e representativa. – Contato: https://zainnelimadasilva.weebly.com/contato.html

 

Quem é Plínio Camillo?

Plínio Camillo

 

Nascido em Ribeirão Preto em 26 de novembro de 1960, reside em SãoPaulo, capital, desde 1984, tendo vivido em Santo André, Piracicaba e Campinas. Escrevinhador. Ator, consultor literário,roteirista, diretor teatral, palestrante,consultor educacional, oficineiro, educador social.

Apresentador do programa do YouTube : Notas de Escurecimento

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