Entrevistas com escritoras negras. Por Plinio Camillo

Série de questões enviadas para pretas escritoras negras e negros escritores pretos que gentilmente responderam ao colunista Plinio Camillo

Plínio Camillo* Publicado em 28/04/2025, às 06h00

A escritora Sued Fernandes - divulgação

Desta vez você vai conhecer a escritora Sued Fernandes.

BRINCADEIRAS NO PORTÃO

Tem um choro engasgado na garganta das mães, culpadas por permitirem que seus filhos brinquem. Havia piques e jogo de bola, carrinhos de rolimã e corda de pular... hoje não mais...hoje não dá... Entrem crianças, fujam! As uniformizadas... As descalças... As de laço de fita no cabelo, com carrinho, bonecas, bicicletas, panelinhas, as pequenas, as de trancinhas... Adoletas, borboletas na cozinha... Corram! Fujam... São culpadas do crime de existir. Quem disse que podem brincar, quem autorizou a ciranda... Mamãe posso ir? Não! Meus pintinhos venham cá, agora, sai do portão! Quantos pintinhos cabem debaixo da minha asa? Entra João, pra dentro, Miguel, Matheus, pra casa...Jéssica, Vitória, Thales, Davi, Maria, quantos mais?... Sai da rua molecada... Não peguem bala de gente desconhecida. Não te achem as balas estranhas... perdidas... Emily, Rebeca... Não deu.

 

SENSATEZ 

Na sensatez da mesmice e da tradição, há o desencontro comigo e a prisão

Celas de sobriedade que alguém construiu e chamou de sanidade.

Em nome da vida e do prazer, que é seu fundamento, 

desato o gozo e a nudez, que agasalha os sonhos, desafia os instintos santos 

e alimenta a alma com seu canto.

Serro as grades e liberto os bobos, as loucas e as almas fadadas ao fogo, que me habitam.

Gargalhadas ecoem, ocupem os espaços infinitos 

Liberdade pra ser... pra crer...pra descrer... pra fazer e acontecer, antes que a jangada passe...

antes que a canoa vire,

as águas me afoguem e não reste uma sombra de quem sou ...

Desentalo o grito

Desinstalo o medo...

Falo o que foi trancafiado na alma e jamais foi dito.

Puxo o tapete das certezas e rasgo o interdito.

 

PORQUE UM HOMEM SE DESPIU NO SUPERMERCADO 

Saiu de casa apressado entregou suas poucas notas a mulher, entregou as restantes no guichê do metrô. A sacola com a marmita fica presa entre dois corpos que concorrem o mesmo espaço. Quase perde a camisa na saída do vagão.

Sai do trabalho cansado após empreitada maçante entregou suor e silêncio, quase perdeu a cabeça com o patrão arrogante. Lembra da lista amassada no bolso e da compra adiada, corre ao supermercado pra não perder o horário, a grana não dá pra tudo, compra o leite da criança e 1 dúzia de ovos, entrega a féria do dia. É contido na saída levado ao fundo da loja, 2 caras com radio na mão.  

- Esse preto suspeito tá escondendo produto. Entrega logo vagabundo!

Aí o preto se despe, das águas engasgadas, da camisa amarrotada, da calça com a lista amassada, da roupa de ladrão que lhe deram, do grito que tava preso ...Diante da multidão, nu, ele se entrega.

 

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Conversas

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Por gentileza, se apresente:

SUED FERNANDES: Sued Fernandes Mulher preta, escritora, psicopedagoga, educadora na baixada fluminense. Avó de dois pretinhos e mãe dos mais lindos filhos do mundo.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quando se descobriu negra?

SUED FERNANDES: Descobri-me negra na entrada na escola. Filha única, caçula entre as primas, paparicada no quintal. O jardim da infância, o contato com professores e colegas, me informaram que eu não era uma princesa e ali era mesmo um campo de batalhas em que eu estaria sozinha. O contato com a religião cristã, diferente da praticada pela minha família no quintal, mostrou a cor dos santificados. Os programas de TV me fizeram entender que eu teria um alvo a ser atingido pra ser bonita e aceita. Então eu precisei de um caminho longo pra desfazer tudo isso, tirar os trajes brancos, os textos santos, a métrica, a estética, os alvos inatingíveis, me dar colo, agarrar um espelho, olhar pra mim e redescobrir minhas tradições do quintal,força, beleza e pretitude minhas. Empretecer nesse mundo branco foi um processo.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como a sua ancestralidade estão nos seus escritos?

SUED FERNANDES: O tal espelho me levou de volta as lembranças apagadas, rasgadas da família. Precisei silenciar, conversar bastante comigo, revisitar os medos da minha própria imagem. Precisei entender que meus ancestrais estavam em mim. Eu não poderia deixar que morressem, que fossem apagados. Não eram os demônios como eu havia sido ensinada. Fui buscá-los em mim, nas minhas memórias. Foi assim, por eles e com eles que a minha escrita emergiu.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é ou foram as suas relações com os seus pais?

SUED FERNANDES: Minha mãe me alfabetizou. Queria que eu chegasse sabida na escola. Contava diversas histórias pra mim. Essa escuta me impulsionou a ler. Meu pai era de poucas conversas comigo. Muito sério. As vezes trazia livros e enciclopédias pra casa. Isso me incentivava muito. Porque eu sabia que agradaria a ele que eu fosse boa aluna, lesse e eu queria conquistar sua simpatia. Minha mãe não frequentou escola. Meu pai não tinha grande escolaridade, mas não queria que eu repetisse sua carreira de empregada doméstica. Ambos contribuíram muito com minha trajetória de leitora de linhas e entrelinhas.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual é, na sua opinião, a função social da sua literatura?

SUED FERNANDES: A função da literatura é revelar, trazer a tona, ampliar, contestar e atestar. Assegurar aos falantes e pensantes espaço para dizer, dizer-se e contradizer.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais suas negras influencias?

SUED FERNANDES: Abdias Nascimento, Conceição Evaristo

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?

SUED FERNANDES: Carolina Rocha (Dandara Suburbana), Plínio Camillo, são personagens e autores de suma importância pra me fazer acreditar que eu poderia ousar escrever. Foram orixás ou usados por eles pra me desafiar em oficina de escrita a me aperfeiçoar e estar mais segura. A prática da escrita também me deu oportunidade de me conhecer mais, me empoderar, me expressar, me reconhecer. Houve incentivo constante a participação em concursos de escrita e publicações coletivas.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?

SUED FERNANDES: Para variar, as barreiras são muitas. Conceição Evaristo teve textos recusados por editoras, ao início da carreira. Quem não é filho de fulano ou conhecido de cicrano não tem abertas as portas das editoras. Então temos uma luta constante por afirmar e reafirmar nossa capacidade de escrita. Cavar espaços com grupo de autores, pra dividirmos despesas de publicação, nos reinventar e fazermos nossas próprias mídias.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Para que e quem você escreve?

SUED FERNANDES: Escrevo para pessoas que, como eu gostei de ouvir histórias. Pra quem goste de ler o outro e suas entrelinhas.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Quais são os seus principais temas?

SUED FERNANDES: Vidas pretas.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: O que também se faz palavras em seus escritos?

SUED FERNANDES: O que faz bater forte meu coração e o que transpiro em forma de letras.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Como foi e é para você a publicação de um livro?

SUED FERNANDES: Um imenso prazer. Porém melhor é vê-lo chegar ao público. Ainda é desafiador distribuirmos nossas histórias.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: De que maneira você vê a representação de personagens e narrativas negras evoluindo na literatura brasileira atual?

SUED FERNANDES: Temo a criação de novos estereótipos a partir de uma leitura rasa de nós. Nossas histórias são múltiplas, temos diversos tons e experiências. Mesmo autores pretos, precisam estar atentos a novas armadilhas e enquadramentos.

NOTAS DE ESCURECIMENTO: Ofereça, por gentileza, sete ou mais figuras negras brasileiras importantes nas sua opinião:

SUED FERNANDES: Abdias Nascimento, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Ana Maria Gonçalves, Elisa Lucinda, Solano Trindade e Esmeralda Ribeiro

 

Quem é Plínio Camillo

Caption

 

Nascido em Ribeirão Preto em 26 de novembro de 1960, reside em SãoPaulo, capital, desde 1984, tendo vivido em Santo André, Piracicaba e Campinas. Escrevinhador. Ator, consultor literário,roteirista, diretor teatral, palestrante,consultor educacional, oficineiro, educador social.

Apresentador do programa do YouTube : Notas de Escurecimento

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