O colunista Plínio Camillo entrevista a escritora Rachel Quintiliano e fala sobre trabalho escravo
Plínio Camillo* Publicado em 25/07/2024, às 06h00
Em 25 de julho celebramos a mulher negra latino-americana e caribenha. A data é um marcador de visibilidade à luta das mulheres negras contra o racismo, o machismo e a exploração e foi definida em 1992, no 1o Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e afro-caribenhas, realizado na República Dominicana.
Pouco mais de duas décadas depois, em 2014, a então presidenta da República, Dilma Rousseff, definiu o mesmo dia, por força de lei, como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.
134 anos após a abolição da escravatura e apesar dos avanços em termos de políticas públicas, programas e ações da própria sociedade civil, a liberdade plena das pessoas negras e especialmente das mulheres parece estar cada vez mais distante. O primeiro semestre de 2022 jogou luz, novamente, a uma série de casos de violações severas dos direitos das mulheres negras. Novamente as manchetes dos jornais estamparam casos escabrosos de escravidão moderna doméstica.
As histórias mais espantosas são de mulheres que passaram a vida toda servindo duas ou até três gerações de famílias com trabalho doméstico, sem qualquer tipo de remuneração, férias e impedidas de convívio social.
Elas chegam ainda meninas, com 11, 12 anos, muitas vezes com a promessa de poder estudar, e ficam até o fim da vida servindo a mesma família. E o mais assustador é que as gerações nascem e parece que ninguém se importa com elas. Pior ainda, existem casos em que elas foram aposentadas sem conhecimento e nunca viram a cor do dinheiro. Sob o pretexto de que são da família, os escravistas modernos tentam se safar do crime hediondo. Essas histórias me fazem pensar sobre o quanto a liberdade plena e o exercício dos direitos humanos parecem ser algo inatingível para as mulheres negras, mesmo em 2022. Também me faz questionar como é possível uma família esconder uma pessoa por três gerações. Nenhum vizinho desconfiou? Nenhum coleguinha das crianças achou estranho? Nenhum familiar se perguntou por que uma mulher de mais de 80 anos ainda segue trabalhando e em péssimas condições?
Isso só me faz pensar que a competência do racismo é assustadora. É capaz de invisibilizar por completo as pessoas que vivem nas senzalas do século XXI. A desumanização é tão aterradora que mesmo quando são libertadas, por vezes, pedem para voltar para a casa dos “patrões”, simplesmente porque não conheceram outra vida.
Segundo os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), “entre 1995 e 2020, mais de 55 mil pessoas foram libertadas de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil e que as pessoas libertadas são, em sua maioria, migrantes internos ou externos, que deixaram suas casas para a região de expansão agropecuária ou para grandes centros urbanos, em busca de novas oportunidades ou atraídos por falsas promessas”. Isso significa que aquele que escraviza o faz, na maioria das vezes, de forma consciente. Atrai a vítima para o trabalho escravo.
Por isso, no mês em que celebramos as mulheres negras latino-americanas e caribenhas faço um apelo às leitoras e leitores da Revista Raça para que não fechem os olhos para o racismo e se inspirem na história de Tereza de Benguela, que três séculos antes, XVIII, liderou por décadas um polo de resistência contra a escravidão e exploração de pessoas negras e indígenas, o maior quilombo na região que hoje conhecemos como Mato Grosso.
Texto publicado no terceiro capítulo do livro "Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia", publicado em 2023 pela Dandara Editora.
NOTAS DE ESCURECIMENTO POR ESCRITO – Série de questões/conversas enviadas para escritoras negras e escritores pretos que gentilmente responderam. Escritora de hoje: Rachel Quintiliano.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Por gentileza, se apresente:
RACHEL QUINTILIANO — Eu sou Rachel Quintiliano, jornalista e escritora. Profissional com experiência em gestão, relações públicas e promoção da equidade de gênero e raça. Trabalhei na imprensa, governo, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais. Estou gerente de Relações Institucionais no GIFE, produtora e apresentadora do programa Pauta Preta da CultneTV, colunista do Giro das Onze, da TV 247 e da Revista Raça. Sou autora do livro 'Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Como é, para você ser uma escritora negra no Brasil?
RACHEL QUINTILIANO — É desafiador, porque existe uma desconfiança muito grande sobre a capacidade de pessoas negras e, especialmente mulheres, de produzir narrativas. Por outro lado, existe neste momento um certo fetichismo com relação a escrita de mulheres negras. Isso abre portas e possibilidades, mas ao mesmo tempo escancara o racismo e o machismo.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Inspiração ou transpiração?
RACHEL QUINTILIANO — As duas coisas. Como escrevo não ficção, acho que tem mais transpiração. Mas um texto sempre começa com uma inquietação, um incomodo, uma vontade de falar, de compartilhar meus pensamentos sobre alguma coisa. Por vezes, isso vem como uma inspiração, entre a ideia e o conteúdo pronto, tem muita transpiração, que traduzo em pesquisa, checagem de dados e informações, processo de escrita e revisões.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Quais são os seus principais temas?
RACHEL QUINTILIANO — Enfrentamento ao racismo, equidade de gênero e raça, visão de mundo a partir do olhar de uma mulher negra.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Qual é o seu processo de escrita?
RACHEL QUINTILIANO — Quando é um conteúdo que quero transmitir sentimento, faço um primeiro rascunho à mão, deixo descansar por alguns dias. Quando volto, transcrevo para o computador e vou acrescentando informações, dados e outros elementos que acho necessário. Quando entendo que o texto está pronto, imprimo, reviso no impresso, corrijo no arquivo digital e começo a pensar na estratégia de publicação. Quando é uma encomenda, um texto mais técnico, faço direto no computador.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Tem um narrador ou eu lírico que sempre utiliza em sua literatura?
RACHEL QUINTILIANO — Quase sempre me coloco nos textos. Escrevo em primeira pessoa, trago experiências minhas e vou entrelaçando com o momento e contexto. É sempre uma voz forte, uma voz de mulher negra, de sobrevivente, de resiliente, de cuidadora e de portadora de esperança. Acho que meu estilo é uma autosociobiografia, se é que isso existe.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — O que também se faz palavras em seus escritos
RACHEL QUINTILIANO — Certamente raiva, amor, compaixão, dor.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Como é você leitor?
RACHEL QUINTILIANO — Essa é uma pergunta difícil, leio muito e conteúdos diversos. No momento tenho lido muitas autobiografias de pessoas negras e crônicas. Mas, não dispenso uma boa ficção. Leio no impresso e também no digital. Faço isso com mais frequência à noite, mas, costumo carregar o livro comigo para ler enquanto estou em trânsito, no transporte público. Não gosto de escrever ou fazer anotações nas páginas, mas uso muitos marcadores.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Como foi e é para você a publicação do Livro?
RACHEL QUINTILIANO — É um processo intenso de reflexão, inclusive sobre mim mesma e minhas opiniões. É um processo cuidadoso que a partir de um rascunho inicial também transita pelas mãos e pensamentos de outras pessoas, como editores, revisores, diagramadores e toda uma rede de profissionais do livro. Então, é um processo que exige paciência e também um certo desapego. Ao mesmo tempo, quando o livro nasce, quando é publicado é uma alegria imensa, um sonho realizado.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Para que você escreve?
RACHEL QUINTILIANO — Para reverberar a minha voz, a voz de uma mulher negra. Para construir e disseminar uma narrativa sobre o que é ser negro/a no Brasil, neste momento.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Quais suas negras influências?
RACHEL QUINTILIANO — Muita gente. Edna Roland, Sueli Carneiro, Ana Flávia Magalhães Pinto, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Maria Nilda de Carvalho (Dinha), Oswaldo de Camargo, Lima Barreto, Maria Firmina dos Reis, Itamar Vieira Junior e Jeferson Tenório. Entre os internacionais, Toni Morrison, Alice Walker, Buchi Emecheta, Paulina Chiziane e Chimamanda Adichie.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Qual foi o seu primeiro e decisivo ato literário?
RACHEL QUINTILIANO — O primeiro eu não sei. Decisivo foi me enxergar e me afirmar verbalmente como jornalista e escritora. Algo que aconteceu recentemente, mesmo tendo escrito e publicado muitas coisas.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Conceição Evaristo cunhou um termo escrevivência. O termo aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. Essa ideia se faz letras em seus escritos?
RACHEL QUINTILIANO — Sem dúvida. Acho que a minha literatura é pura escrevivência. No meu primeiro livro solo, “Negra percepção: sobre mim e nós na pandemia”, isso fica muito evidente, porque estou totalmente entregue naquelas páginas, ao mesmo tempo que elas estão entregues a mim. Conceição foi muito hábil em conceituar essa nossa forma de contar histórias, sejam ficção ou não.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Como é você sendo ancestral em seus escritos?
RACHEL QUINTILIANO — Eu não sei dizer exatamente. O que posso afirmar que aquilo que escrevo só é possível porque tenho alguma história para contar, de uma perspectiva que me conecta imediatamente com quem veio antes de mim, sejam pessoas da minha família ou não. Então, meus textos transbordam meus pensamentos deste momento, mas que sem dúvida vão sendo maturados à luz e aprendizados do passado.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Cuti afirma que a LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA além do negro em primeira pessoa, também prepara o leitor negro. Como tem sida a sua preparação?
RACHEL QUINTILIANO — Essa preparação é contínua. Cada página que deste tipo de literatura aprendo, me conecto, reproduzo e ressignifico. Ela me diz quem eu sou, quem são as pessoas negras em duas múltiplas dimensões e significados e isso é muito caro, porque sempre o racismo está se colocando como um obstáculo desta reflexão, individual e também coletiva que constrói a humanidade, o “ser” negro.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Para quem você escreve?
RACHEL QUINTILIANO — Para todas as pessoas. Mesmo abordando temas específicos, assim como Ana Maria Gonçalves costuma dizer, gostaria que minha literatura fosse universal.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Qual a função social da sua literatura?
RACHEL QUINTILIANO — Registar uma visão sobre fatos atuais, evidenciar feitos do passado e construir estradas para um futuro melhor, cujas premissas sejam a igualdade e a equidade.
NOTAS DE ESCURECIMENTO — Quando se descobriu negra?
RACHEL QUINTILIANO — Nasci negra. Nasci de black power, minha mãe sempre diz isso. Nasci em uma família consciente racialmente, então, não teve esse momento de me descobrir negra. Nasci negra e logo, ainda bem criança fui educada para entender que ser negra no Brasil implicava me deparar com o racismo em suas múltiplas formas.
Nascido em Ribeirão Preto em 26 de novembro de 1960, reside em SãoPaulo, capital, desde 1984, tendo vivido em Santo André, Piracicaba e Campinas. Escrevinhador. Ator, consultor literário,roteirista, diretor teatral, palestrante,consultor educacional, oficineiro, educador social.
Apresentador do programa do YouTube : Notas de Escurecimento
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