De boas intenções a publicidade infantil está cheia

É preciso entender os danos e riscos da publicidade infantil

João Francisco de Aguiar Coelho* Publicado em 16/09/2024, às 06h00

Nenhuma “boa intenção” da publicidade infantil pode se sobrepor à intenção de garantir às nossas crianças infâncias livres - Pexels

Na última década, o Brasil conquistou importantes avanços na batalha contra a publicidade infantil, prática abusiva que consiste no direcionamento de anúncios a crianças – uma camada da população que ainda não tem condições plenas para avaliar criticamente uma mensagem publicitária – com o intuito de seduzi-las ao consumo.

Em 2014, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) assentou o entendimento de que toda publicidade dirigida a crianças com o propósito de despertar nelas desejos de consumo deve ser considerada abusiva e incompatível com o Código de Defesa do Consumidor. Já em 2016, o Superior Tribunal de Justiça, uma das mais altas cortes do país, reconheceu que todo marketing de produtos alimentícios direcionado a crianças deve ser considerado ilegal, dados os possíveis impactos negativos da prática na saúde do público infantil e a necessidade de resguardo da autonomia das famílias na escolha da dieta dos filhos.

Esses avanços, evidentemente, não se deram desacompanhados de fortes reações do setor empresarial, que, muitas vezes, enxerga no público infantil um mercado presente e futuro a ser explorado, independentemente de considerações éticas sobre os impactos do marketing nos direitos dessa população.

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Assim, à medida que campanhas ostensivamente abusivas e agressivas, como a famigerada “Compre Batom”, passaram a ser repudiadas pelos órgãos reguladores e pela opinião pública, empresas começaram a adotar estratégias para direcionar anúncios às crianças de maneira mais discreta, ou, ainda, dando a eles um verniz de “boas intenções” que serviria para disfarçar os seus reais propósitos mercadológicos. De “boas intenções”, hoje, a publicidade infantil está cheia, e nem por isso ela perde o seu caráter abusivo e inteiramente voltado a interesses contrários aos das crianças.

Talvez o exemplo mais didático dessa tendência a uma publicidade infantil “bem intencionada” seja o notório caso do “Show do Ronald”. Em 2013, a rede de lanchonetes McDonald’s ingressou em instituições de ensino infantil, públicas e privadas, de todo país para realizar, dentro das salas de aula, um show protagonizado pelo palhaço mascote da marca, no qual ele apresentava às crianças jogos, mágicas e atividades de entretenimento supostamente educativas. O teor “educativo” da ação, contudo, era acompanhado da exposição dos estudantes ao mascote, logotipo e brindes da lanchonete dentro da escola, que aparentava validar, dentre os pequenos, as mensagens mercadológicas a que eles eram expostos naquele espaço.

Processado pela Defensoria Pública de São Paulo e investigado pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) pela prática, o McDonald’s argumentou, sem surpresas, que não tinha por que considerar a ação abusiva, uma vez que a marca estaria levando às crianças conhecimento sobre assuntos de relevância cultural e social. Mas perceba-se: o caráter pretensamente educacional da campanha foi, justamente, o que permitiu que ela ingressasse nas salas de aula e cooptasse esse espaço - que deveria ser dedicado à formação cidadã das crianças - para interesses mercadológicos e para a divulgação de produtos que podem, inclusive, causar prejuízos à saúde.

Esse verniz educativo não torna campanhas como o “Show do Ronald” menos abusivas; pelo contrário, ele adiciona a esse tipo de ação uma camada a mais de abusividade, explorando e distorcendo espaços de socialização e formação infantil e transformando mensagens positivas em meros pretextos para o incentivo ao consumo. Não por acaso, a campanha acabou levando o McDonald’s a ser multado em 6 milhões de reais pela Senacon e proibido de realizar novas ações similares pela Justiça de São Paulo.  

Casos como o do Show do Ronald acendem um alerta quanto à necessidade de que a publicidade infantil seja tratada com rigor e que as autoridades sigam diretrizes claras para coibir esse tipo de conduta abusiva, cujas “boas intenções” mascaram os seus reais propósitos ilegais.

Felizmente, o Sistema de Justiça segue dando importantes passos para garantir infâncias livres de exploração comercial no Brasil. Em agosto deste ano, a Justiça Federal julgou um processo movido pela Maurício de Sousa Produções contra a Senacon, no qual pleiteava-se a anulação de nota técnica produzida em 2016 pelo órgão de defesa do consumidor. Na nota, a Secretaria reconheceu a ilegalidade do direcionamento de publicidade a crianças em escolas e os prejuízos do marketing de alimentos ao público infantil, orientando as autoridades municipais e estaduais a atuarem para coibir essas práticas.

De início, o pedido da Maurício de Sousa Produções foi acolhido e a nota técnica teve sua aplicação suspensa; no recente julgamento, entretanto, a Justiça Federal reverteu esse entendimento e reconheceu o alinhamento do documento às leis vigentes no Brasil e a sua importância para a proteção do público infantil.

Julgamentos como esse merecem ser não apenas celebrados, mas também divulgados entre mães, pais, educadores e entre as próprias crianças. É preciso que a sociedade tenha clareza de que essas práticas abusivas não são admissíveis ou admitidas no Brasil, e que há orientações vigentes em nível nacional para que os órgãos de proteção ao consumidor as reprimam.

Havendo notícias de ações publicitárias em escolas, publicidade de alimentos não saudáveis dirigida a crianças, ou outras campanhas de marketing que explorem, de qualquer forma, as vulnerabilidades infantis, é cabível denúncia aos Procons, aos Ministérios Públicos ou a outras autoridades competentes.

Nenhuma “boa intenção” da publicidade infantil pode se sobrepor à intenção de garantir às nossas crianças infâncias livres; livres do consumismo, de produtos prejudiciais à saúde, de invasões a seus espaços de educação e da bondade daqueles que buscam lucrar com suas vulnerabilidades no lugar de contribuir com seu desenvolvimento pleno e sadio.    

 

*João Francisco de Aguiar Coelho é advogado do Programa Criança e Consumo do Instituto Alana.

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